O relógio de marfim marcava 02:30h. E dois corpos espaçados inertes repousavam em um lençol rosa, de linho grosso,com cheiro de gente. Gente de verdade.
O telefone toca. Otávio, sonolento e assustado se levanta. Calça os chinelos, passa a mão pelo cabelo e o atende.
_ Oi.
Uma voz em desespero responde:
_ Otávio! Preciso te ver urgente. Gladis acaba de morrer!
_ Não chamou o veterinário?
_ Não deu tempo. Foi uma parada cárdio-respiratória. Tentei reanimá-la, mais não consegui.
_ Me espere, estou indo prá aí.
Otávio com sua pressa de tudo, arrumou-se, deu um beijo em Elisa, desceu até a garagem. Entrou em sua Mercedes, e segue as trilhas da noite abafada. Brasília era insuportável em agosto. Clima quente, árido, quase desértico. Estudiosos afirmam, que a vida em Brasília nesta época do ano, só é possível por causa do lago Paranoá.
Sai de sua quadra (SQS 107), toma o eixo monumental e segue rumo ao lago sul. Enquanto atravessava a vasta ponte do Gilberto Salomão, pensava no que havia se tornado sua vida nos últimos três anos. Atravessando a cidade que não tem esquinas, chegava a conclusão de que em sua vida também não havia esquinas. Divido entre os dois, Elisa e Gramys.
Ela, a face forte, segura, contida, lasciva, poderosa. O amor seguro.
Ele, o amor fraco, dependente, promíscuo, determinado. Amor cor de rosa.
Seus pensamentos divagavam sobre as luzes de alaranjadas refletidas no lago, quando um bêbado atravessa a rua e uma freada brusca lhe acorda a alma, quase mortificada.
Ele pára e grita:
_ Bêbado filho da puta! Quer morrer veado?!!
O bêbado cai na calçada. Estira-se, e ri debilmente de Otávio.
A Mercedes preta pára no semáforo da ponte, e no rádio Renato Russo canta Somewhere. Que ironia! Um Renato que morreu. O único Renato que não renasceu, seu nome não deveria ser Renato e sim Remorto.
O sinal abriu, ele virou à esquerda e se aproximou do prédio de Gramy. Estacionou. Desceu e trancou o carro. Abriu a portaria com sua chave. Chamou o elevador. E o elevador demorava... demorava... demorava... Acendeu um cigarro de cravo, e observava o porteiro que dormia e ressonava. Olhou a fumaça, e preparava-se para amparar Gramy, que sentia por Gladys, uma Puldoll de 06 anos, a mesma afeição que sentia por todas as pessoas que mais admirava.
Gramy era uma dessas pessoas, que ao olharmos para os seus pés, implicitamente percebemos sua homossexualidade. Pés magros de unhas feitas, pés que não são de homem. Pés finos, delicados, quase de moça. Homem magro de 26 anos, pele claríssima, olhos violetas, cabelos ruivos. Fala contida, jeito espalhafatoso, trejeitos femininos e mãos alongadas.
O elevador chega. Ele repleto de sua costumeira pressa, aperta o botão do décimo sexto andar. Acende mais um cigarro. Décimo sexto. O elevador pára. Ele caminha pelo corredor imenso, enfia a chave na fechadura, encontra Gramy chorando sobre aquele cadaverzinho macio e ainda exalando o perfume do pet-shop.
Gramy levanta sua face vermelha, contempla Otávio. Em choro incontido ficam assim por alguns segundos. Otávio beija-lhe o rosto, afaga aqueles cabelos macios, e as lágrimas abundantes de Gramy umedecem a sua camisa verde–oliva, que Elisa havia lhe dado na noite anterior, pelos três anos de casamento.
Otávio naquele momento, mais que o homem, era o forte, o impassível, o amigo único, o irmão. Foi até a área de serviço, abriu o armário e pegou um saco plástico. Rasgou-o e gentilmente afastou Gramy com um respeito silencioso, tácito, humano. Embrulhou aquele pequeno corpo no plástico, abriu a porta de serviço e seguiu por aquele corredor branco, vazio. Chegou à lixeira do andar e jogou o embrulho. Enquanto virou-se, ouviu o barulho da queda seca.
Voltou ao apartamento, abriu a porta e entrou. Gramy estava na piscina. E sua taça de moët chandon borbulhava sua terna melancolia, quase amargura.
Pelos vidros fumês da sacada ampla e perfumada de incenso, Otávio buscava maneiras de se desvencilhar de um de seus dois amores. De qual deles? Missão absurda, totalmente obscura, pois um era a noite, o outro o dia. Uma era o bem, o outro o mal. Um era o paraíso e o outro o inferno. Um era a paz, o outro a guerra constante. Mas de que maneira descompensar a alma sem sair mutilado? De que maneira ser feliz só com o dia, se é a noite a cama do dia? De que maneira se conformar só com o bem, se ele se evidencia justamente porque enxergamos o mal? De que maneira se abster da guerra, se ela é o marco final da paz?
Acendeu um cigarro, abriu a porta de vidro, sentou-se ao lado da piscina. Tomou um gole do champanhe que ainda insistia em soltar suas valiosas bolhas. Sentiu cócegas na garganta e riu em seus pensamentos. Afagou os cabelos macios de Gramy e o beijou na boca. Um beijo tardio, retardatário, de paixão antiga que corre algum risco. Gramy tomado por sua melancolia, quase não respondia. Fugiu do beijo quase longo e recostou-se nos ombros seguros de Otávio. Naquele momento, o ombro lhe valia mais que um beijo. Mais que um tesão.
Eram cuidadosamente, dois homens. Dois homens apenas. Sem rótulos. Apenas amigos.
Mas o que não é gay nesta vida?
O que há de certo em ser gay? Ou de errado em não ser gay? O que há de homem dentro do homem, já que o self não tem sexo?
Otávio desvencilhando-se de Gramy, saiu da piscina lentamente. Gramy observa o corpo dourado, alto, musculoso e latente de sexo. Um corpo, que já não era seu.
_ Você já vai?
_ Já. Elisa tem vestibular amanhã cedo.
Em tom despeitado Gramy responde:
_ Elisa. Elisa. Sempre esta mulher ! Ela já não é pós-graduada em física nuclear, ciência da computação, direito, e o cacete?
_Não Gramy, ela só tem 33, e só se formou em física nuclear e direito.
Otávio pressentindo o tom do diálogo, pensou em retirar-se o mais rápido possível.
_ Até quando Otávio ? Até quando este triângulo será mantido assim? Como se não existisse a outra parte? Como se o abjeto fosse eu? Até quando você vai se dividir entre o santo e o promíscuo?
Gramy após despejar-se todo, levou a mão fortemente à cabeça como se quisesse arrancar seus caros cabelos. Como num gesto de arrependimento. Fitou a expressão assustada de Otávio, e lhe abraçou. Com medo da cobrança feita, o abraçou. Com medo da solidão, o abraçou. Com medo de si, o abraçou num ímpeto de última vez.
Como se tivesse sido flechado em seu tendão de aquiles, Otávio perdeu por alguns instantes o ar, apesar de já a algum tempo esperar por esta fatídica conversa. E no momento em que ela veio, ele não tinha respostas. Não era só o casamento, era o absoluto envolvimento de orquídea que ele tinha com Elisa. Era o companheirismo dela, os beijos roubados na rua, o fondue de queijo que ela fazia. E o sexo... Ah, o sexo... Era tudo que ele não podia explicar. Talvez fosse isto que o prendesse à Elisa. Mulher fabulosa, morena, cabelos negros, olhos verdes, pele firme, expressão forte, de quem manda com poder, sem deixar de ser terna. Dissimulada às vezes. Sua voz alta, alegre era o que mais ecoava dentro dele naqueles últimos tempos. Elisa era o amor sem problemas. Aquele o qual os padrões permitiam, sem transgressões, sem roubos de caráter. Sem vergonhas. Sem satisfações a dar.
Otávio o beijou na face e saiu sem dizer nada. Não sabia o que dizer. Não podia dizer...
Abriu a porta e saiu. Não parecia mais ser aquele garoto bonito de Brasília de apenas 27 anos, filho de diplomata, ex – aluno do Marista, formado em medicina pela Unb. Sua expressão caída, o fazia parecer um carrasco esperando uma ordem para executar alguém.
Em sua saída, novamente o corredor vazio, enorme, branco, com azeite derramado em toda a sua extensão. Novamente o elevador demorado, o guarda dormindo, a ponte de volta, seus pensamentos... Novamente Renato Russo. Novamente Somewhere.
Já se passavam das 04:00,quando entrou em seu apartamento. Elisa o esperava compassiva como sempre. Abraçou-o e se amaram de uma maneira diferente, como se não houvesse vizinhos nem gente dormindo... Como se simplesmente o mundo inteiro pudesse ser deixado para amanhã. Como se a vida pudesse ser vista sob o perfeito ângulo de um vôo panorâmico.
Marcelina Oliveira
Sinop / Verão de 2003